Luiz Henrique Ferreira: A medida que as edificações se tornam mais eficientes, atenção se volta para o processo de fabricação dos materiais de construção

Por Ana Paula Rocha
Para consultor de sustentabilidade, à medida que as edificações se tornam mais eficientes, atenção se volta para o processo de fabricação dos materiais de construção 


Marcelo Scandaroli

LUIZ HENRIQUE FERREIRA 
Engenheiro civil formado pela Universidade de São Paulo (USP), com especialização em empreendedorismo e planejamento sucessório pela Babson College de Boston, nos Estados Unidos. Criou um grupo de empresas constituído pela Inovatech Engenharia, consultoria em construções sustentáveis, pela Carbontech, certificadora de projetos de redução de gases de efeito estufa, e pela Casa Aqua, entidade sem fins lucrativos para disseminação de conhecimento nesse setor. É professor convidado da Escola Politécnica da USP no departamento de Estruturas e Fundações e professor convidado da Universidade Mackenzie no MBA em Sustentabilidade nas Construções. Também é coautor dos referenciais do Processo Aqua e assistente técnico da SBAlliance no Brasil.



Na última década, foram criadas leis para reduzir o impacto ambiental durante a construção e a operação de edifícios. Também se consolidaram no Brasil as certificações de sustentabilidade, que fomentaram o desenvolvimento de projetos com menor consumo de água e energia e a racionalização do processo construtivo. Já são realidade no País o uso de painéis solares, sistemas de reaproveitamento da água da chuva e bacias sanitárias de duplo fluxo, além de práticas como coleta seletiva, lavagem de rodas de caminhões e menor geração de resíduos no canteiro de obras. Em uma evolução natural, os requisitos de sustentabilidade na construção começam a se sofisticar. Para o engenheiro Luiz Henrique Ferreira, consultor da Inovatech Engenharia, uma tendência emergente nesse novo contexto é considerar no projeto o conceito de energia incorporada: como as edificações têm se tornado mais eficientes do ponto de vista energético, começa a pesar na conta global o que foi consumido durante a produção dos materiais. "Mas é preciso analisar todo o ciclo de uso dos materiais. Um caso clássico é o do painel fotovoltaico. A quantidade de energia incorporada no sistema é bem grande, só que essa energia é devolvida para o usuário", afirma.


Quais os maiores mitos de projeto no que se refere à redução do consumo de água e energia elétrica nas edificações?

Posso destacar dois, principalmente. Um mito são os sistemas de aproveitamento de água da chuva mal-empregados. Em São Paulo, por exemplo, há projetos que o especificam para a irrigação dos jardins. A questão é que essas áreas verdes são formadas por gramas e palmeiras. A gente está no meio de uma zona tropical, não tem que ter reaproveitamento de água da chuva para irrigar jardim. Na verdade, é preciso fazer um paisagismo com espécies nativas, com espécies apropriadas. Ou seja, o problema não é o sistema de reaproveitamento de água da chuva, é para o que ele vai ser usado. Se for para lavar calçadas e áreas comuns, tudo bem. Agora para irrigar um paisagismo inadequado é desperdício. Outro ponto importante é em relação à gestão da água na operação do edifício. Pensa-se muito no consumo, mas não na prevenção de perdas. Um dos maiores vilões do desperdício são os vazamentos, principalmente nos edifícios antigos. O ideal é que o projeto de hidráulica preveja um número considerável de hidrômetros para que se consiga identificar com maior facilidade um pico, caso haja um vazamento. Olhando na conta global é muito difícil.


Com a introdução dos sistemas de certificação de edificações, os projetos se tornaram mais eficientes. Haverá uma mudança de abordagem dos selos de sustentabilidade?

Por muitos anos na construção civil, a parcela de consumo de energia no uso e na operação dos edifícios foi muito maior do que a fatia de energia incorporada, que é a quantidade de energia que se gasta para produzir cada um dos materiais. Conforme os edifícios foram ficando mais eficientes, no entanto, essa régua foi caindo. Por exemplo, no Brasil, um edifício ainda gasta 300 kWh/m2/ano. Mas na França, hoje, não se aprova um projeto se ele consumir mais de 80 kWh/m2/ano. Então, lá a fatia de consumo de energia no uso e na operação vem caindo e o conceito de energia incorporada dos materiais passou a ser significativo para a sustentabilidade de um edifício.


Como isso é calculado?
O cálculo de energia incorporada normalmente está atrelado às metodologias de análise de ciclo de vida, que envolvem o cálculo detalhado do impacto ambiental de um produto ao longo de toda a sua vida útil, desde a extração da matéria-prima até o descarte final ou a reciclagem. Na análise de ciclo de vida são considerados aspectos de matéria-prima, processo de fabricação, transporte, entre outros. O conceito de energia incorporada está diretamente relacionado ao total de energia que fica "estocada" no produto, ou seja, aquela energia gasta efetivamente na fabricação do produto.


O Brasil possui uma matriz energética com maior participação de fontes renováveis, se comparada à matriz de países europeus e dos Estados Unidos. Isso afeta o cálculo da energia incorporada aos materiais?

A matriz energética brasileira favorece e muito a redução de pegada de carbono, uma vez que nossas fontes de energia são mais limpas. Dessa forma, o local de fabricação de um determinado produto é determinante na sua pegada de carbono, porém, a quantidade de energia gasta depende da eficiência do processo fabril e da engenharia de materiais. Assim, dois produtos fabricados com a mesma tecnologia em países distintos podem ter pegadas de carbono bastante diferentes, porém, se o processo fabril for idêntico, eles provavelmente possuirão a mesma quantidade de energia incorporada.


Essa abordagem já é adotada no Brasil?
Esse conceito ainda é bastante novo no País, e existem diversas discussões em nível internacional sobre as metodologias de cálculo utilizadas, uma vez que o assunto é bastante complexo, principalmente na definição das condições de contorno e delimitação do escopo do levantamento de energia incorporada. O primeiro passo, sem dúvida, é o cálculo da pegada de carbono dos produtos, fato que já podemos observar em alguns fabricantes de ponta no Brasil. Acredito que, em mais alguns anos, poderemos ter dados suficientes para dizermos o que pode ser melhorado nesses aspectos.


Que setores da indústria de materiais de construção precisam sofrer adaptações mais profundas?

Praticamente toda a indústria de construção teria que rever seus processos. Mas há algumas com mais consumo, como a indústria de alumínio. Seria preciso analisar as etapas de fabricação desse material, agregar conteúdo reciclado, substituir fornos movidos à energia de combustíveis fósseis por energia renovável etc. É uma novidade complicada, mas que vai acontecer.



O conceito de energia incorporada passaria a ser um critério na especificação dos materiais?

Exatamente, mas é preciso analisar todo o ciclo de uso dos materiais. Um caso clássico é o do painel fotovoltaico. A quantidade de energia incorporada no sistema é bem grande, só que essa energia é devolvida para o usuário. Portanto, o painel fotovoltaico só é sustentável a partir do momento que ele devolve toda a energia que consumiu na fabricação.



Qual poderia ser a contribuição da engenharia de estruturas para a construção de edifícios mais sustentáveis?

Na Europa, já cogitam o uso das chamadas estruturas dinâmicas. Nesse conceito, os projetos estruturais trabalhariam sem tanta margem de segurança e se eventualmente ocorresse uma situação de sobrecarga no pavimento, sensores e macacos hidráulicos seriam ativados e a estrutura voltaria ao normal. Portanto, é uma estrutura que trabalha quando receber todas as cargas. Esse conceito pode ser usado com ainda mais facilidade em obras como pontes e viadutos.


É possível confiar nos softwares de simulação de eficiência energética?
Eles são bem interessantes porque é possível antever e simular desempenhos futuros da sua construção. Hoje, esses softwares são utilizados de duas formas no Brasil: para conseguir a certificação, que é equivocado, ou como ferramenta de projeto, que é o ideal. Ao desenvolver um projeto, o arquiteto pensa em uma solução construtiva e já pode simular como isso vai funcionar na edificação para chegar a resultados mais próximos da realidade. O legal é que depois que o sistema já estiver em operação seja feita uma medição da sustentabilidade para calibrar o software. É preciso ter certeza que o que se projetou está funcionando.

O ideal é que o projeto de hidráulica preveja um número considerável de hidrômetros para que se consiga identificar com maior facilidade um pico, caso haja um vazamento

A chamada arquitetura bioclimática tem um papel importante na redução do consumo de energia elétrica em obras residenciais e comerciais, mas precisa ser bem-feita. Quais os maiores equívocos de projeto?


Na minha visão, a arquitetura bioclimática é o principal pilar da construção sustentável. Mas, hoje, falta no mercado justamente a aferição dos resultados. Tudo ainda é muito empírico. Uma parcela significativa hoje dos escritórios de arquitetura ainda não incorporou o conceito de aferir resultados, de calcular a operação. Isso é a chamada retroalimentação, ou seja, instrumentar a equipe de projeto para que se tomem as melhores decisões. O pessoal ainda está errando um pouco a mão na arquitetura bioclimática porque está muito no "achismo" e valorizando muito a estética.



Existem no País, hoje, diferentes sistemas de certificação ligados à sustentabilidade das edificações. Como escolher entre eles, em sua opinião?

Não é uma resposta simples. O ponto principal é entender quais são os resultados esperados,
ou seja, o que o empreendedor espera em termos de sustentabilidade e qual a visão dele da certificação. Se o objetivo é ter muita visibilidade, mas não necessariamente desempenho, é possível ir por um caminho. Se o empreendedor quer ter um desempenho diferenciado, mas nem tanta visibilidade, ele pode ir por outro caminho. Tem que fazer um estudo de viabilidade para saber qual a melhor certificação ou até mesmo se é preciso ter uma certificação, porque se o seu cliente não demanda, é só fazer bem-feito.


Uma obra sustentável é antes de tudo uma obra racional, com baixo desperdício, destinação correta de resíduos etc. Você concorda com isso?

A racionalização do canteiro de obras sem dúvida é um ponto, mas existem muitas outras questões sobre o desempenho da construção que estão atreladas ao projeto, ao uso e à operação do edifício. Por exemplo, por mais racional e sustentável que uma obra tenha sido, se o arquiteto fizer uma fachada envidraçada com uma orientação para o lado que tem maior incidência de sol, sem nenhum tipo de proteção, terá um problema crônico que não vai ser resolvido. A sustentabilidade tem que começar antes, na escolha do terreno.



A escolha de terrenos é uma questão problemática nas grandes cidades. Faltam áreas disponíveis e aquelas que estão são terrenos contaminados ou com dificuldades geológicas. O que fazer nessas situações?

A descontaminação é sim um quesito de sustentabilidade porque se não fosse o empreendedor do mercado imobiliário para tratar o terreno, ele poderia ficar contaminado para sempre. A construção civil tem as ferramentas certas para usar essa área de forma adequada. Por isso digo que a sustentabilidade começa na escolha do terreno, depois passa para as decisões de projeto e, por fim, pela obra. Porém, é importante ressaltar que o maior impacto ambiental não está na fase de construção, mas na fase de uso e operação ao longo dos 30 a 40 anos de vida útil do edifício.



O maior custo inicial de projetos certificados ainda é um obstáculo à disseminação dos selos de sustentabilidade?

Quando a certificação Leed chegou ao Brasil, muitos projetos foram feitos para se conseguir ganhar pontos na certificação (que é um modelo prescritivo). Então, se o edifício utilizasse um sistema de cogeração a gás no seu subsolo, ele ganhava um ponto, independentemente da matriz energética do País. Com isso, gerava-se uma obra mais cara, que não necessariamente tinha um desempenho ambiental adequado. Foi quando surgiram esses fantasmas de que construir com sustentabilidade é muito mais caro - e nem sempre se reduziam os impactos ambientais. Tem que saber projetar e usar as certificações.


Mas há um investimento maior.
Existe sim um investimento adicional, mas que retorna lá na frente. Tudo depende também da consciência de cada empreendedor. Por exemplo, fazer um sistema de aproveitamento de água da chuva no Rio de Janeiro, que é uma cidade que chove muito. Claro que custa mais caro, mas o benefício é grande. Isso deveria ser feito independentemente de certificação de sustentabilidade: é lucro, menos consumo de água. O bom é que como a sociedade está começando a demandar uma nova maneira de projetar, o que antes era conhecido como um fenômeno mercadológico começa a virar exigência. Por exemplo, em São Paulo, acima de quatro banheiros é obrigatório por legislação instalar um painel termossolar para esquentar a água. Isso deixou de ser um custo adicional porque é lei, tem que fazer. A régua do que é custo adicional vai mudando de acordo com as demandas da sociedade, que quer projetos de maior qualidade.

Está ficando tão caro tirar entulho da obra que as construtoras começam a ter que reaproveitar ou a deixar de gerar resíduo

No Brasil, um dos grandes problemas ambientais é a destinação dos materiais não aproveitados e os resíduos. Ainda há poucos aterros nas cidades e o custo de transporte é alto. Como contornar o problema?

Isso se tornou um problema importante. Em São Paulo, aliás, além desse da gestão dos resíduos sólidos, tem a questão da restrição da circulação de caminhões durante o dia no centro expandido. Está ficando tão caro tirar entulho da obra que as construtoras começam a ter que reaproveitar ou deixar de gerar resíduo. Isso parte de um bom projeto. Em primeiro lugar, tem que ser racionalizado, privilegiando materiais pré-fabricados e fazendo uma boa paginação para não haver descartes. Depois, é preciso reaproveitar os materiais, como os paletes. Hoje, eles se tornaram retornáveis, mas há alguns anos era comum serem queimados no canteiro. Já é uma evolução. O setor precisa rever, inclusive, as embalagens, que geram muito entulho no canteiro. É preciso criar latas de tinta maiores, caixas para pisos reutilizáveis, menos plástico para embalar materiais etc. Está caro transportar esses resíduos para aterros.

Fonte: Revista Téchne

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