Proporcionalmente ao uso de bicicletas, mortes de ciclistas diminuíram 10% em São Paulo

A imprensa tradicional noticiou nos últimos dias um aumento de 34% nas mortes de ciclistas na cidade de São Paulo. Parte da mídia já fez rapidamente a associação: as mortes subiram justo quando se começou a implantar ciclovias na capital. E não subiram pouco, afinal 34% é um número digno de atenção.
Mas antes de chegarmos a conclusões precipitadas, vamos analisar esses dados com o cuidado que todos deveriam ter e associá-los com outra informação importante, para entender de fato por que esse número subiu quantitativamente e que relação essa estatística tem com as novas ciclovias, que começaram a ser implantadas em junho de 2014. Vem com a gente.

Tendência de queda

Vamos começar analisando a série histórica desses dados. Por serem números relativamente pequenos, estão sujeitos a flutuações mais amplas. Afinal, apenas para dar um exemplo, se apenas duas das vítimas tivessem seguido por outro caminho ou se atrasado 5 minutos nos dias que para cada uma delas foi fatal, a porcentagem de aumento já passaria de 34% para 29%. Por isso, é importante analisar a tendência em relação aos anos anteriores, para termos um panorama mais amplo.
Reproduzimos abaixo o gráfico constante do Relatório Anual de Acidentes de Trânsito Fatais 2014, documento produzido pela Companhia de Engenharia de Tráfego de São Paulo (CET) que serviu de base para a matéria do Estadão sobre o assunto (e a todas as outras que se seguiram a ela).
Fonte: CET
Fonte: CET
Perceba que em 2014 as mortes aumentaram como um todo (cerca de 8%), com todos os números superiores a 2013 e até mesmo a 2012. Regredimos mais de dois anos em todos os números da tabela acima – exceto o de ciclistas. E é aí que começa a aparecer a informação relevante.
Vamos limpar esse gráfico, deixando apenas a informação que nos interessa, a das mortes de ciclistas, para que ela fique mais evidente. Vamos também acrescentar uma linha de tendência, recurso muito utilizado em séries temporais para projetar valores futuros. Ela nos mostra para onde esses números estão nos levando, apesar das flutuações.
Fonte: CET
Fonte: CET
O aumento para 47 mortes em 2014 está lá, mas também estão os dados de anos anteriores. Com base neles é possível ver que, a partir de 2010, houve estagnação e um leve aumento nesse número, que vinha em queda contínua desde 2005. Então, em 2013, houve uma variação atípica, com uma grande queda. Perceba que embora o número de 2014 seja 34% maior que o de 2013, ele é 10% menor que o de 2012 e menor também que qualquer outro dado anterior, ou seja, a tendência de queda continua.
Claro que 47 mortes são preocupantes, como uma única morte também o seria, mas o número é menor que o de todos os outros anos, exceto o de 2013. Isso significa então que se mais gente tivesse morrido em 2013, chegando a um valor próximo de 50 óbitos, estaríamos comemorando uma queda no índice? Ao preço de 15 mortes? Pra pensar.
Ao analisar esse gráfico surgem imediatamente duas dúvidas: por que essa queda abrupta em 2013 e por que a retomada em 2014?

Queda em 2013

Em 2013 houve uma queda nas mortes de ciclistas da ordem de 33% em relação a 2012. Um número tão relevante que deveria ter sido comemorado à época, mas como não havia discussão ampla sobre o uso da bicicleta como há agora, ele simplesmente não era relevante para a grande imprensa. Mas o que causou essa queda? Como os dados e pesquisas sobre o uso da bicicleta são escassos, precisamos adotar como ponto de partida em nossas conjecturas os fatos relevantes daquele ano. Consultamos nossos arquivos para relembrar o que aconteceu em 2013.
O primeiro fato relevante ocorreu no mês de março: o atropelamento de David Santos de Souza, em plena Avenida Paulista, um fato que chocou pela frieza do crime. O motorista, assumidamente bêbado e acima do limite de velocidade, fugiu sem prestar socorro, levando o braço da vítima dentro de seu carro. Posteriormente, o membro foi jogado em um córrego pelo atropelador, numa atitude fria e inacreditável. O atropelamento repercutiu pelos meses seguintes, gerando bastante discussão sobre o uso da bicicleta na cidade, tornando todos mais atentos à presença de bicicletas nas ruas.
A comoção pública causada pelo atropelamento resultou em três manifestações na Av. Paulista por mais respeito aos ciclistas, todas no mesmo final de semana, culminando em uma reunião entre o prefeito Fernando Haddad e ciclistas na prefeitura em 22 de março. O principal resultado dessa reunião, além de um posicionamento mais adequado do executivo municipal em relação aos ciclistas, foi a realização de uma campanha informativa pedindo respeito a quem usa a bicicleta, que veio a ser veiculada em agosto.
Com o nome “Respeito Bicicleta”, a campanha contava com quatro vídeos, passando informações importantes para ciclistas (ocupar a faixa ao pedalar nas ruas, por exemplo) e para motoristas (mudar de faixa para ultrapassar um ciclista, entre outras). Assista aqui.
Os filmes foram exibidos na televisão por duas semanas, como parte de uma ação mais ampla que se estendeu até o Dia Mundial Sem Carro (22 de setembro), através de spots de rádio, internet, TVs de ônibus e metrô e painéis em pontos de ônibus. Esse seria um segundo fato relevante em 2013, pois chamou bastante atenção para a presença de bicicletas nas ruas e para a necessidade de se proteger o ciclista.
A bicicleta chamou tanta atenção em 2013 que um vereador chegou a propor seu emplacamento, tendo seu projeto de lei rechaçado pela comunidade ciclista em audiência pública, por inúmeras razões. Ainda em 2013, o PL chegou a ser rejeitado pela Comissão de Trânsito e Transportes da Câmara Municipal (embora ainda possa ser levado para votação em plenário em algum momento futuro).
Há outro fato digno de nota: no final de 2012 ficou pronto o primeiro trecho da Ciclovia da Av. Faria Lima, que passou a proteger muitos ciclistas que circulavam pela região. Hoje, a ciclovia é palco de mais de 2 mil viagens de bicicleta todos os dias.
Podemos perceber que vários fatores contribuíram para que 2013 fosse um ano de mudança, com um aumento da visibilidade dos ciclistas nas ruas. Essa mudança se estenderia no ano seguinte, com a construção da importantíssima Ciclovia Pirajussara, na Av. Eliseu de Almeida, e com o início do plano de 400 km de ciclovias. Mas por que, então, a tendência acentuada de queda não se manteve? Temos algumas hipóteses.

Aumento em 2014

Se a bicicleta nas ruas vinha sendo cada vez mais compreendida como um modal de transporte, com direto ao seu espaço, por que as mortes aumentaram?
Um dos motivos poderia ser que os principais fatos que geraram tanta discussão e atenção sobre a presença de bicicletas nas ruas já haviam “esfriado”, tendo sua repercussão bastante diminuída. O caso David Santos foi aos poucos saindo do primeiro plano (embora o processo se arraste até hoje, com o atropelador solto) e a campanha de respeito ao ciclista foi rapidamente esquecida. Hoje, poucos lembram dos vídeos, principalmente entre os não-ciclistas. Em várias das reuniões periódicas com o prefeito (inclusive esta em agosto de 2014, onde se abordou a questão da segurança), os ciclistas relembraram que é necessária uma campanha de comunicação permanente, para que a convivência e a tolerância sejam estimuladas de forma contínua.
Mas a saída de cena desses dois fatores não traria, por si só, um aumento tão grande nas mortes. Seriam as ciclovias? Vamos deixá-las de lado por enquanto e voltar a elas depois, porque em nossa busca encontramos algo bastante relevante, que não pode ser ignorado ao avaliar esse aumento de mortes de ciclistas: o resultado de uma pesquisa do Ibope, divulgada em setembro de 2014.
A pesquisa apontou que o número de pessoas usando a bicicleta aumentou 50% entre 2013 e 2014, passando de 174,1 mil para 261 mil. Se a mortalidade tivesse crescido proporcionalmente ao aumento de ciclistas, teríamos chegado à marca de 52 mortes, voltando ao índice de 2012.

Na verdade as mortes de ciclistas diminuíram em São Paulo em relação ao total de ciclistas, já que o uso da bicicleta aumentou muito mais que os óbitos. Em 2013 houve 35 mortes para 174,1 mil ciclistas (1 a cada 5 mil, 0,020%), enquanto em 2014 foram 47 mortes para 261 mil pessoas (1 a cada 5,6 mil, 0,018%).
Essa estatística mostra que, ao contrário do que a imprensa tradicional vem mostrando, pedalar se tornou mais seguro na cidade. Em relação ao total de ciclistas pedalando, a queda nas mortes foi de 10% entre 2013 e 2014.

E as ciclovias?

As novas (e, para alguns, “polêmicas”) ciclovias paulistanas começaram a ser implantadas em junho de 2014. Até o final do ano foram 142,1 km de novas áreas para ciclistas. Mas será que essas pistas exclusivas influenciaram nesse aumento quantitativo do número de mortes?
A resposta é um belo, sonoro e seguro não. Segundo informações da CET, apenas uma dessas 47 mortes aconteceu nas novas ciclovias – e foi um caso de queda, em que o ciclista perdeu o equilíbrio. O órgão informa ainda que, de agosto a dezembro, com os primeiros quilômetros de novas ciclovias em operação na capital, houve registro de 17 casos, contra 30 nos primeiros sete meses do ano. Esses números nos mostram que as mortes caíram muito depois que as novas áreas começaram a ser implantadas.

Os ciclistas não estão morrendo nas ciclovias, tampouco elas estão fazendo que quem esteja fora delas morra. Depois do início da implantação, as mortes diminuíram mesmo fora das pistas exclusivas.

Além de estarem diretamente protegidos pelas ciclovias, o que por si só já tem um potencial enorme (e óbvio!) de preservação vida de quem pedala, toda a discussão que se gerou em torno do tema certamente contribuiu para aumentar a visibilidade dos ciclistas nas ruas.

Mais ciclistas, menos acidentes

O crescimento do uso também teve sua influência, já que quanto mais ciclistas nas ruas, mais seguras elas se tornam. E por um motivo muito simples: com mais gente pedalando, maior a chance de que aquela pessoa que apenas dirige tenha um amigo, um familiar ou um amor que também usa a bicicleta, passando a compreender melhor que quem está pedalando nas ruas é uma pessoa que também está se deslocando, não um obstáculo atrapalhando o caminho de quem dirige por pura teimosia.
E isso não é invenção de cicloativista romântico: há estudos e estatísticas que demostram isso. Esse será o tema de nossa próxima matéria.
Fonte: Vá de Bike

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