As jornalistas e pesquisadoras em agricultura e alimentação Tatiana Achcar e Cláudia Visoni são grandes entusiastas da saúde no campo, na cidade e na mesa. Para elas, promover uma alimentação de qualidade é uma das formas de transformar o mundo. Alimentação de qualidade, aqui, significa uma rede de produção do que vai pra mesa do consumidor feita com responsabilidade e saúde para a terra e para o homem.
Tatiana já viveu experiências como voluntária em fazendas orgânicas dos EUA por meio do WWoofing, rede internacional que conecta pequenos produtores no mundo todo com pessoas interessadas em trabalhar voluntariamente pra aprender o manejo rural em pequena escala, de forma conectada com a natureza e com os ciclos naturais da terra.
Cláudia mantém um blog no qual dá dicas para quem quer começar a repensar a sua relação com a comida. São textos sobre como fazer uma horta em casa/apartamento, alimentos orgânicos, notícias sobre o tema e dicas gerais sobre alimentação.
Ambas estão entre as fundadoras do grupo Hortelões Urbanos. Hortelão é o nome dado a pessoas que cultivam hortas. A comunidade já conta com quase 900 pessoas conectadas pelo Facebook. Por lá, elas trocam informações, ideias e conhecimentos gerais sobre agricultura urbana e marcam encontros como o “picnic” de trocas de mudas e sementes que aconteceu em abril no Parque da Luz, em São Paulo. “Foi um momento riquíssimo de trocas, gente chegando com mudas, sementes, comidinhas especiais. Tudo ali tinha uma história que as pessoas contavam com amor e entusiasmo”, conta Tatiana. Qualquer um que faça parte da rede social pode se conectar e começar a entender e explorar mais o assunto.
Em Abril, Cláudia e Tatiana ministraram a oficina “No campo, no quintal, no prato: a revolução dos alimentos para um mundo melhor”, que fez parte da programação de atividades da Hub Escola de Outono, do Hub São Paulo, sobre o qual falamos aqui na semana passada.
Cláudia na sua horta, em São Paulo
Para elas, tudo começa com a convicção de que há uma relação estreita entre a saúde do ser humano e a saúde do planeta. “Não há como dissociar uma coisa da outra”, dizem. Hoje, boa parte da alimentação brasileira é baseada em monoculturas, ou seja, extensas plantações mecanizadas que desmatam áreas naturais, empobrecem o solo e demandam adubos químicos, fertilizantes e agrotóxicos. “É o modelo do desmatamento. Estamos fabricando um deserto com a monocultura”. Por isso, nossa alimentação se resume a quatro grandes commodities, que são a base de praticamente todos os outros produtos que consumimos: soja, milho, trigo e arroz.
“É um questionamento do modelo de produção e distribuição dos alimentos. No Brasil, essa discussão quase não existe ainda”. Na mesma medida em que somos uma potência do agronegócio mundial (condição exaltada em propagandas como a deste vídeo abaixo), os caminhos alternativos (alimentos saudáveis e livres de veneno) muitas vezes tornam-se mais difíceis de serem percebidos por grande parte da população. “Às vezes as pessoas até ficam bravas quando se inicia uma conversa sobre isso”, comenta Cláudia.
Por que tanto veneno?
Além de resignificar a relação com o alimento, a agricultura urbana e orgânica é uma forma de fugir do uso indiscriminado de agrotóxicos no Brasil. Segundo Tatiana, a primeira medida de mobilização necessária é impedir que o Brasil compre produtos que são proibidos no resto do mundo. É isso mesmo: por conta de uma política dominada por grandes indústrias químicas, ainda comemos alimentos contaminados com venenos que foram banidos há anos em outros países.
A Anvisa mostra que somos responsáveis por usar 19% de todos os defensivos agrícolas produzidos no mundo, na frente dos EUA, que consome 17%. Em 2011, o Brasil registrou 8 mil casos de intoxicação por agrotóxicos.
Segundo dados apresentados pela professora de Geografia da USP Larissa Mies Bombardi em entrevista ao Brasil de Fato, seis grandes empresas controlam mais de 70% do mercado de agrotóxicos no Brasil e tiveram uma renda líquida de R$15 bilhões em 2010.
E mais impressionante ainda é que 84% dos agrotóxicos da América Latina são consumidos no Brasil, que é “muito permissivo” e “tem produtos que são proibidos na União Europeia e nos Estados Unidos há 20 anos”, comenta a pesquisadora. Larissa também explica porque o argumento de que esse sistema é necessário para alimentar toda a população mundial é “mentiroso”. Para ela, não é questão de produção, mas sim de acesso à renda.
O pesquisador Joel Cohen, chefe de Laboratório de Populações da Universidade Rockefeller, nos EUA, segue a mesma linha: “Em 2009-2010, o mundo cultivou 2,3 bilhões de toneladas de cereais. Do total, 46% foi para a boca de pessoas, 34% para animais e 18% para máquinas (biocombustível e plásticos). 90% da soja cultivada no mundo serve para alimentar animais. Nosso sistema econômico não precifica gente que passa fome. A fome é economicamente invisível. Com o que se planta agora, poderíamos alimentar de 9 bilhões a 11 bilhões, mas 1 bilhão passa fome”.
Charge do Angeli: qual modelo de fazenda nós queremos?
Para piorar, no Brasil não existem linhas de financiamento voltadas para a agroecologia. “Parece mentira, mas para conseguir liberação de dinheiro no banco, o produtor precisa mostrar a nota fiscal comprovando que adquiriu agrotóxicos”, diz Cláudia em seu texto “Por que os orgânicos são tão caros?”.
Nossas faculdades de agronomia formam cada vez mais profissionais que vão reproduzir essa forma de tratar a terra e a produção de alimentos. “Nas faculdades de agronomia predomina o ensino da agricultura baseada em insumos químicos, gerando carência de profissionais que sabem cultivar a terra sem apelar para eles. Para complicar de vez a situação, entidades como a FAPESP, o CNPQ e a CAPES não costumam liberar bolsas de estudos para quem se propõe a estudar agricultura orgânica e familiar”.
Muita gente se depara com o dilema do preço. É fato que, na maior parte das cidades brasileiras, ainda é mais caro comer alimentos orgânicos. Este é, no entanto, o típico caso do barato que sai caro para o país. Como enumera Cláudia, nosso sistema agrícola dominante não leva em conta questões como:
- O custo social representado pelo abandono do campo pelos pequenos produtores e inchaço das periferias urbanas;
- O custo em saúde pública que tem origem no enorme número de pessoas intoxicadas pelos agrotóxicos, seja de forma aguda ou crônica (câncer, doenças neurológicas e endócrinas entre outras);
- O custo ambiental devido à contaminação química do ar, da água e do solo, à perda da fertilidade do solo e da biodiversidade.
Campanha
É importante destacar o papel da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, que luta por outro modelo de desenvolvimento nos campos brasileiros. As pessoas que estão nesta linha de frente acreditam em “uma agricultura que valoriza a agroecologia ao invés dos agrotóxicos e transgênicos, que acredita no campesinato e não no agronegócio, que considera a vida mais importante que o lucro das empresas”, diz o site oficial.
No ano passado foi lançado o documentário O Veneno Está na Mesa, do cineasta Silvio Tendler, que está disponível na íntegra na internet para cópia, veiculação e distribuição, e é uma ótima forma de entender melhor a questão. Veja abaixo:
Nascidos e acostumados a este sistema, acabamos perdendo a sensibilidade em relação ao que comemos. O gosto da cenoura ficou menos acentuado. A alface, sem gosto. O sabor do milho é aquele da latinha. Está certo que seja desta forma? Falta um “apreço pelo sabor e pela qualidade do alimento”, enfatizaram Cláudia e Tatiana.
Ao entender que a qualidade do que vai diretamente para dentro do corpo de cada um de nós foi profundamente afetada por uma indústria que objetiva a produtividade acima da saúde da população, o primeiro passo foi dado. Os próximos abrem um caminho longo de busca por mais saúde no prato, no planeta e na sociedade, com espaço para tentativas e aprendizados. “Na agricultura urbana é possível errar, em um mundo em que sempre é preciso acertar”, conclui Tatiana. Fonte: Super Interessante